segunda-feira, 12 de março de 2012

O eu e os outros eus


O eu não tem uma forma substancial própria, é volátil e ainda mais mutável, e até mesmo moldável, que sua casca material. O eu não é soberano nem unitário, o eu é um outro que inventamos para nos sentir mais seguros e firmes, pra não parecer a nós mesmos que não somos ninguém, como se precisássemos de uma definição qualquer limitadora, pra que não ficássemos presos no vazio da liberdade... “o homem está condenado a ser livre”, disse Sartre, mas o homem foge da liberdade como o diabo da cruz, e inventa para si um eu postiço para dela se defender.

Atualmente existe uma epidemia de depressão e bipolaridade, como se não fôssemos todos, por natureza, bipolares, tripolares, infinitopolares. E como se a tristeza e a melancolia não fossem naturalmente parte da vida cotidiana, conflitos com os quais temos que lidar todos os dias. Remediá-los seria matar o próprio verme da vida, a própria continuidade que se dá através da constante superação do eu. Somos a serpente que troca de pele. Somos a fênix que renasce das cinzas. O verme que desmantela a carne em decomposição, que desconstrói aquilo que um dia foi vivo, o mesmo verme que a faz voltar pra terra de onde veio, é quem permite que possa se tornar algo vivo novamente. A vida na natureza é alimentada pela própria morte, e assim é também a vida humana, algo que está sempre morrendo, e sempre nascendo de novo, sempre se jogando no fundo do poço, e depois escalando novamente as pedras até ver a luz... Isso que se chama de vida, é feito de ciclos, de cores, tonalidades que se acendem e apagam. Não existe o preto e o branco, existem tonalidades de cinza, níveis de mistura do preto e do branco. Mas não é um ciclo de repetições, ao contrário, é um ciclo de descontinuidades, onde não existem apenas ações e reações, as relações são dialéticas, está tudo entrelaçado e tudo é relativo.

O eu é uma invenção estético-social daquilo que pensamos que deveríamos ser, uma projeção daquilo que queremos mostrar e apenas uma parte do que somos ou fingimos ser, considerando todas as partes que escondemos. A vida é teatro, criamos para nós um personagem e muitos representam o mesmo a vida toda. Criamos figurinos, cenários e falas, e representamos. Criamos elementos. Carteira de identidade, carteira de trabalho, CPF, bolsa, caderno, livros, mochila, sapato, roupa, móveis. Dinheiro, cabelo, maquiagem. PIS, PASEP, cheque, cartão de crédito, matrícula, diário, casamento, casa, filhos. Fotografias, retratos, desenhos, textos. Memória, lembranças reais e imaginárias, sempre imaginadas, sempre reformuladas e incompletas, nunca exatamente fiéis à realidade passada. Sentimentos que voltam do passado, a lembrança da dor de ontem e da diversão da semana passada, isso nos torna outros e nos torna os mesmos. São formas de reconhecermos a nós mesmos em algo, de definir ou delimitar uma identidade, fôrmas onde formamos o eu, pra que ele pareça aceitável diante do outro, e do outro em nós. Sempre existe a vontade de repetir o irrepetível, de ser o mesmo de ontem, de semana passada, de dez anos atrás... mas a vida, é esse algo que não se repete nunca, que nunca está no mesmo lugar onde a encontramos há cinco minutos.

Nunca somos um eu. Somos sempre outro. Somos essa mudança, somos movimento dinâmico.


(texto e foto de 2011)

Mini-conto de primavera

Ele ia andando com sua mochila em direção à rodoviária. Várias pessoas passavam com malas de todos os tipos. Um ser humano dormia debaixo da passarela, ao lado de uma muleta e de um cachorro encolhido. O homem também se encolhia debaixo do cobertor ("deveríamos fazer campanhas para adoção de seres humanos", pensava ele).
Do outro lado da avenida, um negro enrolado numa manta surrada brandia os braços e gritava enlouquecido. Enquanto caminhava, ele ouvia os passantes fazendo pilhéria para os companheiros, ou rindo sozinhos. "Afundado na pedra!", e balançavam a cabeça, "a essa hora já 'tá assim!". Eram quase sete da manhã. "Quem é que vai me salvar, vocês vão me salvar?" gritava o louco em tom de desdém. Ele ia andando devagar e observava a cena com um ar estranho. Não ria, tinha uma ruga no meio da testa. (Hora? Que tolo pensar que no universo daquele louco existiam horas...mania dos seres humanos de relativizar tudo a si mesmos...)
Na sala de espera a televisão mostrava uma praia que fora transformada em reserva ambiental. Algum líder comunitário falava sobre a pesca artesanal da lagosta.
(Enquanto isso, um shopping center era construído sobre um manguezal e uma empreiteira reconstruia um dique, primeira parte do projeto de um condomínio privado a ser construído sobre as dunas, o qual a comunidade local havia desmantelado semanas antes, em protesto contra a privatização de área pública e reserva natural. Tudo isso acontecia no mesmo instante em que uma secretária depositava alguns milhares em contas de laranjas, destinados a uns vereadores da cidade, para que os mesmos aprovassem a renovação de uma licitação que cedia ao seu patrão o controle do transporte coletivo da cidade. Nada disso passava na TV.)
Ainda na sala de espera, um rapaz digitava freneticamente num laptop, alguns estavam absortos em Ipads ou Iphones. Outras pessoas pareciam muito pobres, em contraste com as mulheres penteadas, maquiadas e enfeitadas e os homens bem vestidos. Isso se notava pelas roupas, pelas bagagens e pelos objetos que portavam. "Tubarão, Criciuma, sete e meia!", anunciou o motorista. Todos entraram no ônibus. Ele sentou-se na poltrona de número 20. "Com licensa, por favor", disse uma jovem de cabelos loiros artificiais, sorridente, civilizada, irritantemente impecável, e sentou-se na poltrona ao lado. Ele adormeceu.
Na sala de espera, a televisão passava uma reportagem sobre o funcionamento dos novos aparelhos com internet móvel.
"Então aos poucos, sem pressa
eu boto fumaça a beça
pra dentro dessa cabeça
pra que ela nunca se esqueça
que mesmo que seja terça-feira de tarde
às vezes é bom parar
ficar debaixo do sol
porque o sol arde!

E a gente tem que caminhar em cima de uvas
a gente tem que ser uma gueixa e servir
a gente tem que ser um samurai
e o último movimento tem que implicar
que role uma cabeça!
Tem que rolar uma cabeça,
alguma coisa tem que cair.
tem que sangrar,
tem que sair fogo do peito!"

(A concepção)
“22 de março. As trevas aumentaram, aliviadas tão somente pela reflexão nas águas do clarão da catarata vaporosa. Numerosas aves, de porte gigantesco e brilhante alva plumagem, sobrevoavam o barco desde cedo, entoando o eterno Tekeli-li ao surgirem de algum ponto além do véu. O canto de adejo desses pássaros deixou Nu-Nu literalmente prostrado a um canto da canoa; mais tarde,ao tocá-lo, percebemos que se lhe evolara o espírito. E agora a corrente nos conduzia ao centro da cortina nebulosa, onde imenso abismo abria-se a nossa espera; mas logo à frente, interrompendo nossa trajetória, ergueu-se de súbito uma figura velada, de proporções descomunais, dobrando ou mais as do maior vivente. Sua face traduzia inexprimível serenidade e sua pele era branca como a neve.”
('O Relato de Arthur Gordon Pym', Edgar Allan Poe, 1838.)
Desenho de Odilon Redon: 'Guardian Spirit of the Waters ', 1878.

(James Ensor (1860-1949): "The dangerous Cooks")

"Ele ia andando pela rua meio apressado
Ele sabia que tava sendo vigiado
Cheguei para ele e disse: Ei amigo, você pode me ceder um cigarro?
Ele disse: Eu dou, mas vá fumar lá do outro lado
Dois homens fumando juntos pode ser muito arriscado!
Disse: O prato mais caro do melhor banquete é
O que se come cabeça de gente que pensa
E os canibais de cabeça descobrem aqueles que pensam
Porque quem pensa, pensa melhor parado.
Desculpe minha pressa, fingindo atrasado
Trabalho em cartório mas sou escritor,
Perdi minha pena nem sei qual foi o mês
Metrô linha 743

O homem apressado me deixou e saiu voando
Aí eu me encostei num poste e fiquei fumando
Três outros chegaram com pistolas na mão,
Um gritou: Mão na cabeça malandro, se não quiser levar chumbo quente nos cornos
Eu disse: Claro, pois não, mas o que é que eu fiz?
Se é documento eu tenho aqui...
Outro disse: Não interessa, pouco importa, fique aí
Eu quero é saber o que você estava pensando
Eu avalio o preço me baseando no nível mental
Que você anda por aí usando
E aí eu lhe digo o preço que sua cabeça agora está custando
Minha cabeça caída, solta no chão
Eu vi meu corpo sem ela pela primeira e última vez
Metrô linha 743

Jogaram minha cabeça oca no lixo da cozinha
E eu era agora um cérebro, um cérebro vivo à vinagrete
Meu cérebro logo pensou: que seja, mas nunca fui tiete
Fui posto à mesa com mais dois
E eram três pratos raros, e foi o maitre que pôs
Senti horror ao ser comido com desejo por um senhor alinhado
Meu último pedaço, antes de ser engolido ainda pensou grilado:
Quem será este desgraçado dono desta zorra toda?
Já tá tudo armado, o jogo dos caçadores canibais
Mas o negócio aqui tá muito bandeira
Dá bandeira demais meu Deus
Cuidado brother, cuidado sábio senhor
É um conselho sério pra vocês
Eu morri e nem sei mesmo qual foi aquele mês
Ah! Metrô linha 743"

(música: Raul Seixas, Metrô Linha 743)

http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=OLhfvpJvFrw


"E o desejo nunca satisfaz; nada é tão fatal para um ideal do que a sua realização."
(Will Durant, "A história da filosofia", no capítulo sobre Shopenhauer)

(foto: Bola suspensa, Alberto Giacometti)

Courbet, Schopenhauer e o sexo.


"A vontade se mostra, aqui, independente do conhecimento e funciona cegamente, como numa natureza inconsciente. (...)Devido a isso, os órgãos reprodutores são, adequadamente, o foco da vontade e formam o pólo oposto ao cérebro, que é o representante do conhecimento. (...)Eles são o princípio que sustenta a vida - garantem a vida eterna; por essa razão, eram dorados pelos gregos no 'phallus', pelos hindus no 'lingam'. (...) Hesíodo e Parmênides diziam, de forma muito sugestiva, que Eros é o primeiro, o criador, o princípio do quel se originam todas as coisas. A relação dos sexos (...) é, na realidade, o invisível ponto central de todos os atos e condutas, e está se deixando entrever em toda parte, apesar de todos os véus lançados sobre ela. É a causa das guerras e o fim da paz; a base do que é sério e o alvo da pilhéria; a inexaurível fonte de espírito, a chave de todas as ilusões, e o significado de todas as insinuações misteriosas. (...)Nós a vemos, a todo instante, sentar-se, como a verdadeira e hereditária senhora do mundo, pela plenitude de sua própria força, no trono ancestral; e de lá, com um olhar de desdém, rir dos preparativos para confiná-la, aprisioná-la ou, pelo menos, limitá-la e, sempre que possível, mantê-la escondida e mesmo assim dominá-la a fim de que ela só apareça como uma preocupação subordinada, secundária da vida."

(Arthur Schopenhauer: 'O mundo como vontade e ideia', 1819, in Will Durant: 'A história da filosofia')

Imagem: Gustave Courbet, 'A origem do mundo', 1866.