segunda-feira, 12 de março de 2012

Mini-conto de primavera

Ele ia andando com sua mochila em direção à rodoviária. Várias pessoas passavam com malas de todos os tipos. Um ser humano dormia debaixo da passarela, ao lado de uma muleta e de um cachorro encolhido. O homem também se encolhia debaixo do cobertor ("deveríamos fazer campanhas para adoção de seres humanos", pensava ele).
Do outro lado da avenida, um negro enrolado numa manta surrada brandia os braços e gritava enlouquecido. Enquanto caminhava, ele ouvia os passantes fazendo pilhéria para os companheiros, ou rindo sozinhos. "Afundado na pedra!", e balançavam a cabeça, "a essa hora já 'tá assim!". Eram quase sete da manhã. "Quem é que vai me salvar, vocês vão me salvar?" gritava o louco em tom de desdém. Ele ia andando devagar e observava a cena com um ar estranho. Não ria, tinha uma ruga no meio da testa. (Hora? Que tolo pensar que no universo daquele louco existiam horas...mania dos seres humanos de relativizar tudo a si mesmos...)
Na sala de espera a televisão mostrava uma praia que fora transformada em reserva ambiental. Algum líder comunitário falava sobre a pesca artesanal da lagosta.
(Enquanto isso, um shopping center era construído sobre um manguezal e uma empreiteira reconstruia um dique, primeira parte do projeto de um condomínio privado a ser construído sobre as dunas, o qual a comunidade local havia desmantelado semanas antes, em protesto contra a privatização de área pública e reserva natural. Tudo isso acontecia no mesmo instante em que uma secretária depositava alguns milhares em contas de laranjas, destinados a uns vereadores da cidade, para que os mesmos aprovassem a renovação de uma licitação que cedia ao seu patrão o controle do transporte coletivo da cidade. Nada disso passava na TV.)
Ainda na sala de espera, um rapaz digitava freneticamente num laptop, alguns estavam absortos em Ipads ou Iphones. Outras pessoas pareciam muito pobres, em contraste com as mulheres penteadas, maquiadas e enfeitadas e os homens bem vestidos. Isso se notava pelas roupas, pelas bagagens e pelos objetos que portavam. "Tubarão, Criciuma, sete e meia!", anunciou o motorista. Todos entraram no ônibus. Ele sentou-se na poltrona de número 20. "Com licensa, por favor", disse uma jovem de cabelos loiros artificiais, sorridente, civilizada, irritantemente impecável, e sentou-se na poltrona ao lado. Ele adormeceu.
Na sala de espera, a televisão passava uma reportagem sobre o funcionamento dos novos aparelhos com internet móvel.

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